O café da manhã tomado sem pressa
Falar sobre um gênio da música sempre soa como lugar comum. São palavras que se repetem, cansam e não trazem o novo para ser o renovo do que já foi dito. É como se tentássemos separar mito e realidade, o trivial do original, a fala da expressão. Com Francisco Buarque de Hollanda, carioca criado em São Paulo, 67 anos, não é diferente. Seu último trabalho, intitulado “Chico”, traz na simplicidade dos versos a profundidade dos desejos, daqueles lugares escondidos onde guardamos os sentimentos mais nobres, e que estão nas suas letras, assim, ao alcance das mãos de quem procura no alto da adega um vinho envelhecido, de cheiro forte e gosto marcante.
Falar em Chico sem mencionar as suas canções irreverentes, astutas, nas intenções e no duplo sentido para driblar a censura e denunciar e combater e subverter a ferocidade militar de um governo em plena ditadura militar é ignorar uma geração ousada da história política do país.
“O que será que tem nesses olhos teus, pra me seduzir, pra me escravizar”, são os versos de Canção dos Olhos, considerada a primeira composição de Chico, em 1959, influenciada pelo LP Chega de Saudade de João Gilberto. Em 1963, entra na Universidade de São Paulo, um ano depois começa sua trajetória pelos palcos.
É nessa época que o samba ganha força, as canções passam a ter autoria e a imagem do “artista popular” no Brasil é consagrada nos programas de rádio. Sambistas como Ataulfo Alves e Wilson Batista, induzidos pelo regime varguista, passam a escrever canções para o “trabalhador” e não para a “malandragem”, o que estaria de acordo com os ditames da pretendida integração e identidade nacional, propostas pelo Estado Novo.
Com isso, artistas e intelectuais como Chico Buarque tiveram que criar metáforas e dizer ironias subentendidas, para unirem compositores e povo como peças de resistência política. Nos anos 80, mais precisamente em 1985, o fim da ditadura, da censura e o início do processo de redemocratização do país, transformaram as canções de protesto em melodias melancólicas da bossa nova e do samba.
Chico passava a ler a alma do povo, criava um novo estilo de compor, de cantar, se tornava ídolo de uma geração politizada da história do Brasil, incitava os militantes, difundia a cultura, gritava pelas revoluções sentimentais, brincava com as palavras.
E pensar que em 50 anos de carreira, Chico ainda faz uma geração inteira “saber delirar, e morrer de paixão, e seja lá como for, ter fim a infinita aflição, e o mundo vai ver uma flor, brotar do impossível chão”. Ouvir Chico é se despir dos pudores, encontrar em suas canções, novas formas de militância. Não uma militância pretensiosa, estupidamente intelectualizada, que alardeia a própria presunção, mas uma militância contra o cenário musical de muitas canções vazias que ocultam as boas e novas vozes que muitas vezes sequer chegam aos microfones.
Canções como Tipo um Baião, Essa Pequena, Rubato, Nina, presentes em seu novo cd, mostram um Chico sutil, leve, com o seu habitual poder sobre as palavras, tecendo cada fio do enredo, o doce e o amargo dos pormenores cotidianos.
Para além das canções de cunho político, Chico canta a nuance do amor e do desamor, as dores das paixões mal resolvidas, as relações cotidianas através de uma linguagem simples, com aguçada sensibilidade ao mundo feminino. Suas ideologias não desapareceram, elas criaram novas formas de se manifestar. Numa cultura cheia de extremos como a nossa, em que os heróis covardes se tornam gigantes frágeis, Chico canta sem medo de libertar o poeta que tem dentro de si, enche de prosa e poesia os nossos ouvidos, e se torna o café da manhã tomado sem pressa.